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"Gai-Gai"



Olá Amélia,

Como estás minha flor? Eu sei o quão chateada deves estar por não ter dado sinal de vida nos últimos dois meses, mas as coisas deste lado tendem a ficar complicadas e confesso que tenho muita vontade de voltar para casa... para os teus braços. Escrevo-te com o coração apertado, cheio de saudades e por saber das dificuldades que a nossa família está a passar. Mas peço-te de joelhos, ainda que não vejas, não desistas de nós. 

Como é que estão os nossos filhos? Tenho imensas saudades desses dois inconsequentes, que apesar da bandidagem são o meu maior orgulho. Ainda não consigo acreditar que o nosso Antoninho conseguiu a bolsa de estudos para fazer medicina na Índia… felicidade não cabe no coração deste pobre homem, Deus não é pai! E o macaquinho do Zé, já tirou o gesso?

Sabes flor, hoje sequer consegui pregar o olho, pois tenho estado a pensar em mil e uma maneiras de fazer-te chegar uma cesta básica decente para que não tenhamos de pedir ajuda aos nossos parentes que de certeza irão fingir desentendimento. Mas não te preocupes mulher, eu vou resolver!

Enfim, não te escrevo apenas para contar coisas más, seria muita maldade da minha parte fazer-te esperar este tempo todo para ouvir infortúnios. Olha, finalmente consegui um emprego novo meu amor, desisti dessa vida de limpador de carros e resolvi tentar a sorte nos terminais de carga do porto. Incrível não é? Pois é, foi tudo através de um generoso senhor a quem eu prestava serviços desde que cá coloquei os pés. Não é nada que nos irá proporcionar uma vida luxuosa por agora, mas alguma coisa há-de mudar de certeza.

Ah sim, estou tão entusiasmado que não disse qual será a função, eles chamam-me estivador, mas na verdade não passo de um “gai-gai”. Não irei ganhar muito, mas ainda assim consegue ser melhor. É bom, não é? Quem sabe um dia desses eu ponho-me nesses navios a fazer viagens pelo mundo fora e por sorte de Deus saímos deste buraco?
Eu tenho muita fé que vamos longe minha flor e peço que não deixes de acreditar. Vês o Bawito? Ele também vem de longe, hoje está quase casado com a mana Liloca e tu flor, um dia tu serás melhor que ela e nada nos faltará. Não te quero prometer o mundo quando nem um teto decente consegui proporcionar-te ainda, mas eu sei que conseguimos.

Maria, eu te amo e jamais te esqueças disso… principalmente quando o palhaço do meu irmão tentar assediar-te novamente. Não permitas que ele te iluda com as notas verdes que carrega constantemente no seu bolso, acredita, ele carrega no coração a mesma quantidade de desrespeito. Eu sei que homens ao teu redor não faltam, afinal de contas eu sou um preto sortudo e ganhei o coração da preta mais bela da aldeia, mas promete-me que não vamos permitir que a distância e o destino nos deixem morrer.

Olha, a vela já está quase a acabar e amanhã tenho de levantar antes das galinhas, mas se eu pudesse, usava as próximas páginas deste caderno para falar da imensa vontade que eu tenho de sentir o calor do teu corpo, a doçura do teu beijo e a quentura desse paraíso que escondes por baixo das tuas capulanas. Mas, infelizmente tenho que despedir-me.

Já pedi que fizesses tantas promessas ao longo deste pedaço de papel, mas vou pedir mais uma: Promete que vais ficar bem flor?

Com amor,

Agostinho

Nota: O rapaz que te vai fazer chegar esta carta é o rapaz que me ajuda nos biscatos que tenho feito, chama-se Rafael. Ele deverá trazer-te o fogão que tanto pediste e comida suficiente para este mês e quem sabe o próximo (se fizeres a boa gestão de sempre): 10kg de carapau, 10kg de arroz, 5kg de feijão e 5l de óleo. Isso é o máximo que consigo e espero que me perdoes por não poder fazer mais.

Antes que perguntes onde irás conservar o peixe, os pais do Rafael vivem nas redondezas, tem como armazenar e irão apoiar-te no que precisares, não te acanhes, abuse deles tal como o Rafael abusa da minha boa vontade (risos).

Escrito por: Sheila Faiane

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