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Raquel


Fonte: Geoff Spear

Em um estalar de dedos vi o meu universo desmoronar como se aquele plano tivesse sido arquitetado do mesmo jeito que os meus pais não planearam o meu nascimento, repentinamente e sem fé. Creio eu que tanto descuido fez de mim uma mulher de espírito livre, dona de mim e do mundo.

Eles chamavam-me desequilibrada, mas tudo que eu queria era ensiná-los o quão bom é viver intensamente! Pois, para mim aqueles foram os meus melhores anos de liberdade e libertinagem, onde conheci o mundo da cabeça os pés, plantei e colhi frutos.. adormeci e acordei em vários lugares sem nunca ter tirado os pés da minha terra natal. Ah, doce juventude!

Alguns anos depois tentei experimentar as delícias de um lar, mas senti que o mundo ainda precisava de mim e que o tempo jamais me perdoaria. Confesso que diversas vezes cogitei a ideia de novamente engrenar na selvajaria desse mundo insano, mas os meus deveres de mãe gritaram horrores quando quis me lançar de volta.
Cai na real, cai no areal e jurei que seria a mulher ideal por quem o mundo clamava, por isso obedeci e venci para que os meus rebentos pudessem acreditar que a vida tem duas cores e que as duas são mais interessantes quando sabemos apreciá-las sem esperar o consentimento ou opinião de outrem. 

Enfim, enquanto ouço o tiquetaquear do monitor que vem me acompanhando nas últimas semanas, pergunto-me se terei feito o suficiente e se do meu jeito errado terei feito o correto. Porém, o tempo urge e não tenho mais certeza se ainda cá estou, mas de uma coisa tenho certeza, o inesperado pode ser uma benção ou pode ter o sabor de uma vingança servida em um prato frio. E acho que acabo de provar um..

O peito aquece e já sinto os meus olhos desistirem de mim. Neste momento não sinto mais nada, não vejo mais nada para além das paredes desgastadas pelo tempo, enfermeiros desinteressados e parte de uma família que não reconheço mais. Quero gritar, quero chorar, quero questionar e quero agradecer, mas limito-me a despedir-me das minhas memórias já quase inexistentes e de tudo que me resta.. meu espírito livre, um cilindro de oxigênio e um eterno minuto de silêncio.

Vini Vidi Vici - Eu vim, Eu vi, Eu conquistei! 

Dedico este texto a minha tia (in Menoriam).

Escrito por: Sheila Faiane 

Comentários

  1. E essencial viver o hoje é o agora;
    O amanhã é inevitável. Não quero me arrepender do que não fiz pelo que pudia ter.... Bonita dedicatória 😘😉

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    Respostas
    1. Muito certo Zefa. Onde quer que ela esteja.. vai sentir o carinho 🙏🏽

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  2. Meu Deus.. Muito bonito.. Com certeza ela vai sentir

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