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EN4


Tinha 10 anos quando pela primeira vez sentei no colo do meu pai e tomei conta do volante, mas mesmo ainda que quisesse comandar o carro por completo, era muito baixinha para alcançar os pedais. Nessa altura já conhecia o código de estrada tal como um crente fanático conhece a Bíblia, enfim. Eu era muito esperta, tão esperta que os meus amigos diziam: "Se a vida fosse uma novela, o teu nome seria Soninha 38".

Anos se passaram e claro, fiquei craque – meu pai era amante de drifts, um preto com sangue de mulato, não tinha como não amar adrenalina. E, não tinha como ele não amar me ensinar tudo que ele sabia - de 5 meninas, fui a única que toda vida se interessou por motores. Para ele eu era o filho homem que nunca teve, por isso a minha mãe o culpava todos os dias (literalmente), por eu ser lésbica, mas isso é outra história.

Mexer em motores e trocar as mudanças do carro sem que o mesmo soluçasse era como trocar de sapatilhas, eu simplesmente amava aquilo. Aos 18 anos comecei a participar em corridas clandestinas na EN4 e por conta da nossa inconsequência, muitas amizades foram perdidas para o asfalto; eu mesma tive vários acidentes, mas vaso ruim não quebra. Lena, minha namorada, não gostava muito do que eu fazia, mas respeitava minhas escolhas e por algum motivo (chamado amor), ela simplesmente compactuava com tudo e mais alguma coisa. Ela era uma das melhores pessoas que eu conheci em toda minha vida e quando completamos 22 anos, decidimos que era hora de engrandecer os nossos planos. Claramente que não foi fácil, ninguém concordou e isso criou em nós uma grande revolta (muito mais em mim, porque eu já tinha provado de todas as formas possíveis que me tinha tornado responsável e jamais passaria por cima das minhas escolhas, ainda que isso magoasse a quem quer que seja – parei de correr, concentrei-me mais no trabalho e procurei crescer).

No calor da aventura, da pressa e da paixão, decidimos fugir e foi no dia 22 de Novembro que a minha vida mudou por completo. Queria eu que esta fosse uma história de amor, que terminasse com um final feliz, mas as coisas não são tão lineares assim. Na madrugada daquele mesmo dia, sai da Cidade da Matola e fui até Tchumene, fui resgatar a minha Rapunzel. Em menos de 10 minutos, estávamos nós a entrar para a N4, rumo a Cidade de Maputo – tínhamos arrendado uma casa no Bairro Central e o nosso plano era comemorar o nosso 5º ano de namoro no nosso pequeno lar.

Estava uma noite ligeiramente agitada, era uma sexta-feira e estava todo mundo com o pé na estrada, por isso Íamos devagar para evitar incidentes. Nossa fuga teria de ser perfeita, tal como havíamos planeado:

- Este dia não poderia começar da melhor forma Jay. Agora só falta a nossa música e vê se pisas um pouco mais nesse acelerador, porque a essa velocidade só chegamos a NOSSA casa, amanhã!

- Se quiseres que eu corra um pouco mais, vê se colocas o cinto meu amor.

Sim, a 40km/h seguíamos viagem ao som do ‘Black Coffee, David Guetta e Delilah Montagu– Drive’, concentrados no futuro que achávamos que a vida estava a reservar-nos.

- Coloca o cinto amor, esta estrada anda muito perigosa e … - Até que de repente fomos interrompidas por um estrondo ensurdecedor e ficou tudo escuro.

Por uma eternidade, que durou alguns minutos, pensei que estivesse a sonhar e nada daquilo parecia real. Ouvia vozes distantes, gritos e não percebia nada. Não conseguia mexer as minhas pernas, minha visão estava nublada. Tentei apalpar a cadeira que Lena ocupava, mas estava vazia, nada daquilo fazia sentido e os gritos continuavam:

- Virem o carro, esta ainda está vida. Rápido, rápido…

- O camionista fugiu, alguém anotou a matrícula?

- Tapem a moça por favor…

De repente, tudo ficou escuro outra vez, acordei numa cama de hospital completamente sem noção do tempo e sem conseguir lembrar de quase nada. Meu pai dormia no sofá e a enfermeira via alguma coisa naqueles mil monitores a volta da minha cama:

- Bem-vinda de volta Jennifer!

- Lena... Onde está a Lena… - ela parecia não me escutar e eu precisava de respostas. Nos dias que se seguiram, ninguém mencionou o que tinha acontecido, eu tinha sonhos estranhos e quase todos os dias ouvia os gritos da mãe da Lena pelos corredores:

- Ela levou minha filha, ela matou minha Lena…

Eu não entendi o que estava a acontecer, os meus ataques de pânico começaram a preocupar os médicos. Foi então que o meu pai achou melhor contar o que tinha acontecido e talvez assim eu ficasse mais calma. Se ao menos ele tivesse me preparado para o que eu iria ouvir a seguir, não desejaria tanto a morte, tanto quando desejo hoje:

- Filha, um camião cortou-vos a prioridade na zona da Parmalat. Não sabemos ao certo como aconteceu, mas as pessoas que te acudiram contam que ele estava a sair das Bombas da Engen a uma velocidade desnecessária. Ele não travou, mal calculou o ângulo e não conseguiu evitar o embate contra…

- Lena… - Eu não conseguia pensar em mais nada, lagrimas caiam freneticamente e eu só queria entender porquê – Onde está a Lena, pai… onde?

- Lena não resistiu, o embate foi muito forte e ela foi cuspida. O motorista fugiu, mas a polícia continua a investigar o caso. Nós faremos de tudo para que haja justiça, minha princesa, não chores – Entrei em choque, perdi o amor da minha vida, sequer tive a oportunidade de dizer adeus, pois estive em coma por duas semanas. A mãe da Lena está revoltada e culpa-me todos os dias por tudo que aconteceu.

Na minha cabeça, não cabe aquele acontecimento. Justamente no dia em que fui mais prudente, aconteceu o acidente que tirou tudo de mim, não falo só da minha perna que teve ser amputada, meus braços cheios de cortes… falo da única pessoa que soube me ensinar sobre o amor incondicional. Todos os dias acordo a pensar que talvez não devêssemos ter saído de casa, que eu nunca deveria ter sugerido aquela fuga e talvez nada disso teria acontecido. Não importou o quão cuidadosa eu fui na estrada, eu perdi uma vida para a EN4 e tenho vindo a pagar por um erro que eu não cometi.

Escrito por: Sheila Faiane

Nota: Todos os dias uma vida é dizimada no Matadouro EN4, pessoas inocentes assistem suas vidas chegarem ao fim e ninguém as protege. O que é feito dos inconsequentes? É tanta imprudência, mas a quem vamos culpar se ninguém parece se importar?



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