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Relatos da Quarentena | A Mulher Casada


Mais um dia isolada do mundo e acho que já perdi noção do tempo, pois nem sequer sei que dia é hoje e se estou realmente viva. Tal como tu mãe, pensei que este momento fosse ser perfeito para colorir novamente o meu mundo, poder cuidar do meu marido e lembrá-lo que a mulher que ele conheceu ainda existe.

Há muito nos perdemos um do outro e por conta da correria do dia-a-dia, passou a ser algo menos preocupante porque tínhamos onde descarregar as nossas frustrações - ele na bebida ou na Cátia e eu no meu trabalho. Nunca te contei porque eu queria seguir o teu exemplo, cuidar da minha família e não permitir que o mundo visse a sujidade que existe debaixo do meu tapete. Portanto, quando decretaram o isolamento social, era como se estivessem a preparar cuidadosamente o meu funeral e eu só tinha o silêncio para me amparar. Eu teria de ficar trancada com o Manuel por um tempo indeterminado e isso não cabia na minha cabeça.

Nas primeiras semanas eu tentava fazer de tudo para agradar, tal como me ensinaste e lembraste quando a necessidade de isolamento foi anunciada: café na cama, receitas diferentes para quebrar a rotina, as sobremesas que ele tanto adora, jantares a luz de velas, mas sabes o que ele fazia mamã? Ele mandava-me servir, mas depois ia sentar na sala de TV e trancava a porta. Outros dias eram piores, quando eu tentava esmerar-me, ele metia a comida na boca e cuspia. Para completar, chamava-me estúpida.

Já na terceira semana ele nem sequer olhava para mim e sempre que lhe dirigia a palavra ele respondia-me aos berros. Se me perguntares o que eu fiz, nunca te saberei responder. Então eu deixei de me importar, comecei a fazer menos e eu pensei que ele não fosse notar, uma vez que a minha presença era indiferente. Num belo dia, para o almoço preparei uma das minhas receitas novas, mas senti-me mal e fui tirar um "cochilo". Acordei com gritos, com som de algo a ser quebrado e uma dor intensa na cabeça.

- Deitaste as receitas que a minha mãe te deu para fazer estas merdas? Queres me matar com estas porcarias que tens cozinhado?  – Eu queria que ele tivesse ficado apenas pelas palavras mamã, mas ele foi um pouco longe e atirou o prato para a minha cara… na cama. Quando ele percebeu que estava a sangrar, ele ficou assustado, eu fiquei assustada também e não sei dizer se eram lágrimas ou sangue que escorria pelo meu rosto. Ele correu para me abraçar, pediu desculpas e tentou se justificar de todas as formas possíveis. Eu fiquei imóvel e quando ele percebeu que eu não reagia a nada, ficou mais nervoso, largou-me e chamou-me fria. Disse que a culpa era minha e que se eu não tivesse cozinhado mal ele não teria se aborrecido.

Levantei-me da cama e fui tomar um banho quente para me acalmar. Tive tempo suficiente para chorar minha alma, fazer-me mil questões e procurar respostas, mas parecia não ser suficiente. De repente senti mãos frias no meu corpo, ele tocava-me eu sentia repulsa e quando eu tentei afastá-lo, ele apertou-me o pescoço e ordenou que eu ficasse quieta. Uma vez disseste-me que nunca posso negar-lhe o sexo, então eu fiz, mas na verdade mãe, eu fui violada pelo meu próprio marido.

- Cala-te cadela! A tua mãe não te ensinou nada sobre o lar? – E essa foi a nossa rotina nas duas semanas que se seguiram. No início eu não o condenava, pois era provável que eu não estivesse a fazer o suficiente, mas agora percebo que a minha cegueira me levou ao desespero e quando finalmente decidi denunciá-lo, fiz no momento errado, pois eu não sabia que ele estava atrás da porta. Tenho toda imagem emaranhada na minha cabeça, lembro apenas que ele arrombou a porta e perguntou com que eu estava a falar. Fiquei sem reacção e no minuto seguinte… era minha cabeça que ia à parede com força, vezes sem conta. 

As marcas que ele deixou em mim nenhuma máscara poderá esconder, de qualquer forma, nem preciso mais. Mãe, eu sei que tu não me vês e não me ouves, queria muito te ter ligado quando as coisas começaram a ficar insuportáveis. Agora é tarde demais e não me dói tanto ver-te chorar, mas sim o facto de estares a consolar o homem que matou a tua filha.

Escrito por: Sheila Faiane

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