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Relatos da Quarentena | A Viúva



Parece um sonho, um sonho não, talvez um pesadelo. As vezes achamos que estamos prontos para certas coisas, quando na verdade não. Até ontem estava tudo bem, o meu amor estava aqui e eu podia tocá-lo, sentir o seu cheiro e abraçá-lo. Sim, nós éramos esse tipo de casal – terminávamos a frase um do outro e depois de tantos anos, até a gargalhada era a mesma. Sinto um aperto no peito quando digo “éramos”, acho que a ficha ainda não caiu e dói pensar que daqui para frente sou apenas eu e Deus. Deus, abandonaste-nos quando mais precisávamos de ti, ou já estava assim escrito nas tuas linhas? Nós tínhamos jurado amor para sempre, tu és testemunha disso e tu mesmo colocaste um ponto final na história mais bonita que tu criaste. Como foste capaz?

Tento não julgar as tuas acções, tento não colocar a culpa em ti, pois também acho que se não tivéssemos sido teimosos, talvez teríamos saído do hospital de mãos dadas e eu não estaria presa na minha própria casa, enquanto o meu marido está a ser enterrado. Ele nunca quis morrer sozinho, nós prometemos um ao outro que sairíamos disto juntos e olha só, nem pude despedir-me – a última vez que o vi, foi na ambulância, quando o levaram de mim. Por trás da máscara eu não conseguia ver o seu sorriso, mas seus olhos diziam tudo, era como se ele já soubesse que era o fim.

Nós fomos inconsequentes, não quisemos adiar os nossos planos, viajamos, descartamos as máscaras. Fazíamos parte do grupo dos que só acreditam vendo e foi apenas na primeira noite febril que descobrimos que poderia ser verdade, foi na primeira dificuldade respiratória que caímos na real, foi no primeiro pedido de socorro que entendemos a importância do simples acto de lavar as mãos. E agora estou aqui, a reviver cada momento marcante das nossas vidas, mas o único que não me sai da cabeça, foi quando me pediram que reconhecesse o corpo do meu marido por vídeo-chamada. Sinto que ainda estou anestesiada, sinto as lágrimas pintarem o meu rosto de tristeza, sinto dor pelo corpo todo e não posso fazer nada. 

Nunca me senti tão inútil em toda a minha vida e eu só precisava lavar as mãos.

Este relato é baseado em factos reais, é a história de muitos. Não sejamos estas pessoas, não ignorem as medidas de segurança que nos são impostas. Hoje pode ser ninguém, mas o amanhã é incerto e o teu tudo pode virar nada. Portanto:

  • Evite o contacto directo com outras pessoas caso tenha viajado recentemente para um dos países com casos de coronavírus. E, no primeiro sinal de tosse, febre, ligue para as linhas verdes do MISAU;
  • Lave sempre as mãos com água e sabão;
  • Cubra a boca com o braço dobrado em forma de "V" ou com um lenço, sempre que tossir ou espirrar e de seguida lave as mãos;
  • Evite tocar os olhos, nariz ou boca sem estar com as mãos limpas; e
  • Fique em casa, salve vidas.

Estamos juntos!
Escrito por: Sheila Faiane

Nota: Se tiver sinais e sintomas da doença dirija-se imediatamente à Unidade Sanitária mais próxima.
Linhas verdes:
  • Alô Vida: Vodacom – 84146 | TDM – 800149 | Mcel – 82149; 
  • Plataforma PENSA: *660#; e
  • Instituto Nacional de Saúde Moçambique: 843328727 – Contacte através do aplicativo Whatsapp, enviando apenas um “Olá”.

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