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Escolhida



Pele negra e escura como as minhas lembranças, cabelo crespo e castanho por conta da poeira. Pequena e radiante, não me importava, apenas rezava todos os dias para que o sol brilhasse com mais intensidade ao acordar. De onde eu venho a paisagem é turva, não há luz e os sonhos desistem de nós. Aquele é o tipo de lugar que os ricos chamam “fim do mundo”, mas os meus irmãos chamavam lar e tudo que eu queria era saber o que existia do outro lado da janela, e acreditar que um dia poderia experimentar o amor que o Padre Andrew tanto falava nas missas de domingo.

Não sei ainda como lá fui parar, a história perdeu-se no tempo e se calhar eu não fazia tanta questão de saber. Eu costumava ter pesadelos todas as noites, era como se eu soubesse como e porquê aconteceu. Lembro-me que havia uma mulher de nome Manuela, ela era a única pessoa que parecia se importar comigo, até o dia em que levou-me a um "passeio" pela mata, mas graças a irmã Maria eu não fui vendida. Foi nesse dia que aprendi sobre a maldade do mundo e percebi o significado de desconfiança.

Vi um bocado da minha infância se afogar em Namaacha, num abrigo de rejeitados e sem esperança de me ver mulher num lugar melhor. Aquele incidente de 1998 tornou-me uma pessoa paranóica e fechei-me para o mundo, parte de mim quase se convenceu de que estava a perder grandes oportunidades, mas outra parte tinha certeza de que algo de bom viria. Enfim, nem todos os dias foram ruins. Apesar das condições, o Padre Andrew e a Irmã Maria procuraram sempre fazer o melhor por nós, apesar de sujos e ligeiramente descuidados, não sentimos a pobreza somali e fomos diariamente educados.

Enquanto aguardava por um lugar na vida de alguém, vi meus irmãos seguirem viagem com famílias diferentes, compostas por mulheres desesperadas e homens exaustos. Havia dias que lembrar deles trazia-me paz e esperança, mas noutros eu ficava desesperada e temia por eles. Eu rezava incansavelmente para que Deus me guiasse até aos braços da mulher que me abandonou, que o tempo voltasse e ela fizesse outra escolha ou que me fizesse acreditar novamente que a felicidade plena é real.

Quando completei 8 anos (apesar de saber que aquela poderia não ser a data do meu aniversário), virei a noite de joelhos e pedi a Deus que me permitisse viver pela primeira vez. Eu sei que Deus nos ouve e que apesar de não realizar os nossos desejos quando bem entendemos, ele faz as coisas no seu devido momento. Foi em 2001 que o sol de Junho iluminou minha alma. Lembro-me que o dia estava bastante calmo, era o dia das visitas dos futuros pais e todos estavam super ansiosos, menos eu, para mim era apenas mais um dia. Foram chegando vários casais, maior parte deles deixava-me assustada, pois era possível notar que estavam mais desejosos que nós.

Já quase no fim do dia, despenteada e descalça, decidi que não iria mais participar daquele circo de agonia, fui molhar os pés na lagoa que temos no quintal do Orfanato e procurei esquecer que mais uma vez não fui a escolhida. Fiquei lá perdida nos meus pensamentos, até que ouvi Irmã Maria me chamar. Pus-me a correr, pois tive medo até de imaginar que tinha extrapolado o tempo de recolha e não queria ter de passar a noite ajoelhada em grãos de milho. Quando lá cheguei, deparei-me com uma Irmã Maria risonha e aquela que veio a ser o grande amor da minha vida.

- Está senhora quer muito te conhecer Palmira! 


Escrito por: Sheila Faiane

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