Querido diário – 01/04/2019,
Já há muito que não te escrevo.
Andei meio triste nos últimos meses e por estar cansada de humedecer-te com as
minhas lágrimas, preferi guardar tudo para mim. Hoje vim segredar-te que há algum
tempo achava que tivesse encontrado o amor da minha vida, estava tão feliz e cega...
namoramos há muito tempo e aos olhos dos outros, ele é o amor em pessoa, é muito gentil e o
melhor homem do mundo.
O que eles não sabem é que ele me
bate, mas tudo bem, eu entendo seus motivos. Sei que as vezes eu o provoco e ele
não suporta isso, por isso tenho aprendido a respeitar seus desejos. Ele não
gosta que eu use roupas apertadas, maquilhagem, salto alto, próteses e etc; mas é
engraçado que ele me conheceu assim e disse que eu era a mulher mais linda do
mundo. Agora é tudo diferente, tudo que o excitava, agora o deixa furioso - ele
não quer que outros homens olhem para mim do jeito que ele olhava, então eu me
escondo no ridículo.
Todos os dias sou abandonada, mas quando ele volta para casa, fazemos amor
e eu esqueço tudo. Ele gosta de sexo selvagem, as vezes me aleija em lugares
que eu nunca imaginei, mas eu gosto porque ele gosta. Ele me ama de um jeito
inusitado, ninguém entende, mas o bom disto é que ninguém decide nada sobre a
minha vida. Ele me ama intensamente e verdadeiramente porque vê o que eu sou
por dentro, por baixo de toda poeira do mundo, por baixo das minhas saias.
Na calada da noite, me pega
desprevenida e me invade. Sem carinho, sem beijo, sem
preparação, sem controle do meu corpo, vejo por poucos segundos a sua cara
cheia de ardor e desejo, e depois sou violentamente pressionada a cama pelo seu
corpo lindo e esculpido. Com dor e medo, oiço os seus abafados gemidos e os
meus abafados gritos. Ex-gritos, porque agora grito internamente, grito sem som.
Sempre achei que por ser bonita e ter um bom corpo, iríamos nos dar bem. Ele elogiava-me tanto, venerava tanto, mas hoje ele não me vê. Hoje ele detesta as minhas curvas e minhas mãos forte de tanto lavar as suas roupas e limpar o chão da casa de banho.
Querido Diário – 23/04/2019,
Ah, tenho novidades: para além
das limpezas, agora também cozinho. Tu sabes diário que nunca tive de fazer
estas coisas em casa dos meus pais. Lá eu vivia bem e sempre tive quem fizesse
isso por mim. Tentei contratar uma empregada que fazia tudo, era um anjo… ele
mandou embora e agora a empregada sou eu, aliás “dona de casa”, porque uma
mulher que se prese deve – não sabia que era assim.
Apesar das coisinhas que falei
noutro dia, tenho aprendido tanto dele: como me comportar, como o servir, como
preparar as refeições todas a horas e tê-las quentes assim que ele chega a
casa. Ontem preparei um jantar especial, mas ele demorou tanto que acabei
adormecendo no sofá com fome e chorando todas minhas frustrações enquanto
esperava por ele. Quando ele chegou, a mesa estava posta, dois pratos, porque
devemos comer juntos, mas a comida já estava fria. Fui a correr para aquecer e
com tanto sono que sentia, entre sonecas o arroz queimou um pouco. Trémula, peguei
no pirex e comecei a servir a parte de cima para que ele não reparasse, só que
de repente senti um golpe na cabeça.
- PORRA QUEIMASTE ESSA MERDA OUTRA VEZ! – Ouvia enquanto caía. Tola,
preocupada com o pirex, coloquei o meu corpo por baixo, bati com a cabeça e
tudo ficou escuro. Quando despertei o relógio na parede marcava 3:17. O chão
frio e a minha capulana estavam cheios de arroz e sangue – eu chorei. Chorei e
me apercebi que era tudo culpa minha. Se eu não fosse tão preguiçosa, não teria
tanto sono, eu nem faço tanta coisa, ele sai e trabalha e eu fico aqui a cuidar
de tudo. Não faz sentido!
Querido Diário – 29/04/2019,
Querido diário, ontem íamos
jantar fora. Esmerei-me nos preparativos, mas o desapontei. Ele detestou tudo,
disse que parecia uma prostituta, que aquilo só podia ser influência das vadias
que eram as minhas primas, e que a minha mãe não me tinha educado direito, que
ele até ia cancelar o noivado. Deu-me um murro na boca disse que eu sou
estúpida e que devia fazer o jantar porque já não iríamos sair. Mal conseguimos
comer, ele atirou o prato porque o caril tinha pouco sal, agarrou-me ali mesmo
no meio da sala, bateu-me com a primeira coisa que encontrou (acho que foi a
perna partida do sofá grande) e invadiu-me com força como forma de me castigar.
No final da noite, eu só via salpicos de sangue na minha saia branca, nas
minhas pernas e pés, no chão e nas minhas mãos.
Querido Diário – 30/04/2019,
Inúmeros, pequenos e imóveis,
parados no tempo, retratos do que foi uma vida, estavam exactamente como eu. Eu
não percebi o que aconteceu, não percebi como meu amor morreu. Foi tudo rápido
e brutal, um golpe macabro o ceifou perante a mim, o tornou aflito de
princípio, depois compreensivo, e por fim frio.
Meu amor foi-se, entretanto não
consigo chorar pelo seu desaparecimento. Estou perplexa, admirada, espantada,
mas também estava cansada. Dava-me trabalho, dava-me dor de cabeça, mas também me
dava tratamento digno de princesa.
Além do sangue, tenho também a
arma em minhas mãos, menor que o meu dedo polegar, ela estava escondida entre
as minhas pernas desde que grávida decidi que não podia mais viver de surras.
Escrito por: Sheila Faiane & Jennifer Musse
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