Avançar para o conteúdo principal

Um lugar para morar


Nascer, reagir ao estímulo do ambiente, crescer, reproduzir e morrer… poderá a vida ser muito mais do que isso? Poderei ser algum dia livre para escolher a minha própria vida? 
Anos por detrás desta batina, nunca pude conhecer o mundo na sua verdadeira essência pelo facto de me ter recusado a casar com o vizinho rico muçulmano, que já tinha três esposas e eu supostamente seria a quarta. Não sei o que se passou na cabeça dos meus pais, católicos reservados, que ver sua filha casar virgem era seu maior sonho e orgulho. Eu tinha apenas 14 anos e só queria poder continuar a ir à escola, brincar com as minhas amigas como toda adolescente da minha época.  
Mas não foi isso que aconteceu, naquele dia a mamã ordenou que para o jantar eu colocasse o punjabi que a prima Salmina me tinha oferecido para usar no seu Nikah e o papá me mandou cozinhar os melhores pratos, porque teríamos uma visita especial. Para o meu espanto, a visita era o velho Mohamed da casa ao lado, que quase vencido pelo tempo, mal se aguantava em pé. O sentimento de repulsa era desmedido, mas cumprimentei educadamente. Vi-o estender sua mão em minha direção, onde jazia o fio de ouro mais brilhante que eu já vira em toda minha vida, quis recusar, mas diante dos olhares severos dos meus pais vi-me obrigada a aceitar. 
Ao longo do jantar ouvi-os conversar sobre os detalhes da cerimónia. Eles fizeram-me duvidar das suas próprias crenças quando decidiram sem antes me consultar, que eu deveria me converter. Ainda que quisesse desesperadamente, não proferi uma palavra sequer e mantive-me quieta enquanto minha alma ardia de raiva, fingi que não era sobre mim que eles falavam. Naquele momento eu percebi que afinal se tratava de um jantar de negócios onde a mercadoria era eu. 
Terminado o jantar, fui logo para o meu quarto e rezei o "pai nosso" aos prantos, pois tudo que precisava naquele momento era de um milagre para me tirar daquela situação. Eu estava a ser vendida para um homem que poderia ser meu pai, era inconcebível. Na mesma noite tentei convencê-los de que tudo aquilo era uma loucura, mas pelos vistos, só lhes interessava sair da pobreza. Ajoelhei e quase beijei seus pés, mas eles simplesmente ignoraram meu desespero. Meu sofrimento era evidente, transbordava a cada palavra enquanto implorava para que eles não me entregassem ao velho Mohamed, mas foi tudo em vão.
Na manhã seguinte, os meus pais estavam radiantes de alegria e eu com o espírito triste disse-lhes que faria uma loucura se não tentassem ao menos me respeitar. Fui novamente ignorada, sem opção, esperei a noite cair e fugi para o Convento de São José de Lhanguene. Confesso que fui bem recebida pelas madres superiores, mas também não era o que eu realmente desejava, havia escolha? Eu não podia confiar em mais ninguém da minha família, aquele seria meu novo lar e pronto! Depois de ouvir minha história e entender o motivo de eu lá estar, com entusiasmo ajudaram a preencher a ficha de noviça e abrigaram-me. 
O vestido branco extremamente longo simbolizava a minha pureza, mas por dentro eu estava escura e perdida de tanta tristeza. Não queria que as coisas tivessem terminado daquele jeito, mas ainda que eu tivesse apenas 14 anos, sabia exatamente discernir o certo do errado. Os dias passavam e eu continuava a sentir-me destruída e desgovernada, embora o ambiente fosse sereno eu me sentia que a qualquer momento alguma coisa dentro de mim iria explodir. 
As outras noviças pareciam felizes e acomodadas com o convento, no entanto, sempre que fossem escaladas para a missa, ficavam atordoadas e eu simplesmente não percebia o motivo. Quando chegou a minha vez, fiquei apreensiva, pois era a primeira vez que saía do convento após aquele incidente e pela reação das outras, não me pareceu que fosse gostar da experiência. A irmã Marta levou-me até capela e foi para os seus afazeres, enquanto isso fui perambulando por aquele lugar que parecia um santuário, até o momento em que foi apresentado o Padre André, que de imediato deu todas as instruções. 
Terminada a missa, todos os crentes saíram e ficamos apenas nós os dois. O padre André era intimidante e rondava o altar enquanto bebia a sua taça de vinho, mantendo sempre o olhar vidrado em mim. Minha próxima e última tarefa era limpar o confessionário, mas ficava complicado quando se tinha alguém a acompanhar cada movimento. Distraí-me por uns instantes e quando dei por mim, senti sua mão pesada no meu ombro, sua boca no meu ouvido falando baixo: 
- Portaste-te bem hoje. Sabes o que acontece quando se tem um bom desempenho? – mantive-me quieta, pois não percebia nada do que estava a acontecer – Esta noite vens jantar em meus aposentos e como sei que boa menina és, não vais contar a ninguém. 
Enquanto ele sussurrava essas palavras em meu ouvido, suas mãos acariciavam meu peito quase inexistente. Ele encostou-se um pouco mais e com lágrimas nos olhos, senti sua ereção invadir meu espaço, quis gritar, mas ele apertou meu pescoço. Era nojento, era absurdamente nojento…
- Não ouses gritar querida. - Minha alma congelou naquele exato momento em que bruscamente fui penetrada, bem ali no lugar sagrado onde a menos de quinze minutos estiveram pessoas respeitando aquele homem que hipocritamente espalhava a palavra de Deus. – Shh… isso, caluda!
Quando finalmente voltei ao convento, estava com o rosto inchado de tanto chorar, meu vestido estava manchado de vergonha e ninguém falou nada. Como podem elas ignorar? Pelo os olhares desconfortáveis, pude perceber que elas sabiam, mas a covardia era mais gritante que qualquer pedido de desculpas por não me terem alertado. Corri para o meu quarto e inundei-me em minhas próprias lágrimas, sem sequer me importar com quem viesse tentar me acalmar. Algumas horas depois, a irmã Marta fez-se ao meu quarto, creio que tenha esperado até que eu me acalmasse.
- Filha, não chores. Não há mal que aconteça sem o consentimento do Senhor! Dizem os mundanos que ele escreve certo por linhas tortas, por isso não o questiones. – Eu não conseguia acreditar na podridão daquelas palavras. É como se ela simplesmente não se importasse. Ela não se importa. – Vá, agora levanta-te, tens de te limpar para o jantar. Ele odeia quando nos atrasamos. – Meu Santo Deus, ela sabia do jantar. Seria isto um ritual? Será isto um prostibulo? 
Recusei-me a ir para a mesa de jantar e compactuar com tamanha imundice. Eu me sentia suja e tudo que desejava era um banho longo e sair daquele lugar. Entrei no chuveiro, esfreguei minha pele com tanto ódio que comecei a sangrar, minhas lágrimas se confundiam com os jatos de água que do chuveiro caiam e doía tudo em mim. Quando o meu choro se tornou silencioso, oiço alguém bater a porta com muita força, era o desgraçado do padre André a gritar:
- Sai já daí menina ou eu não me responsabilizo pelos meus actos. Tens apenas cinco minutos… - Desliguei-me e desejei desaparecer daquele lugar a qualquer custo. Por conta do que sentia e tudo que já não sentia, peguei na caixa de primeiros socorros que ficava no armário da casa de banho e tomei todos os comprimidos que lá tinham. Enquanto eu me permitia encontrar um lugar seguro para morar, em minha mente vagavam pensamentos obscuros – ele não precisa mais de cinco minutos, quando pode eternamente apodrecer junto com o meu corpo.

Escrito por: Sheila Faiane e Melissa Dinda

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Memória e Reminiscência (lembrar e recordar)

Memórias, fragmentos de um tempo que se desfez com os ventos do passado, mas que permitiu-se deixar rastos para que de tudo um pouco eu carregasse no futuro. Memórias das trafulhices deixadas na infância, dos beijos mal beijados, dos “eu te amo” ditos em vão... memórias de um “eu”, que quisera eu ter ensinado que o mundo é mais fácil quando nos permitimos mais, quando amamos mais, quando queremos mais. Não existe um manual para vida. Talvez um Manuel! Então, eu me aconselharia a ouvir mais, deixar-me-ia envolver por cada palavra daqueles que em minha estúpida inocência um dia chamei intrometidos – os donos da razão, papá e mamã! Pois eles sabiam, eles sabiam e tudo que eu fiz foi fechar os meus ouvidos e fingir que era adulta o suficiente para não seguir seus mandamentos. Saudades, saudades do tempo em que a minha única preocupação era acordar e tentar ser feliz, ser sem noção sem me preocupar com o amanhã, pois o amanhã era apenas mais um dia. Mas ao mesmo tempo, ainda sinto

V A L É R I A

Meu nome é Valeria, tenho 30 anos, hoje afirmo veementemente que sou uma ex-prostituta e não tenho vergonha disso. Minha história não difere muito das outras, entrei nessa vida por opção e não por estar somente a passar por dificuldades. Sempre gostei de vida fácil, sei lá, desde criança que me puseram na cabeça que eu merecia um homem rico e que não precisava trabalhar – por conta da minha beleza e do meu corpo. Tudo começou quando me expus ao sexo pela primeira vez aos 15 anos, quando descobri que poderia ter tudo que quisesse, era só uma questão de dar uns minutinhos de prazer. Já perdi a conta de quantas vezes fui para cama com homens bem mais velhos, eles queriam-me a tempo inteiro e faziam de tudo por mim; tanto que hoje tenho carros, casas e sou feliz. Bem, feliz até ao momento que em que o candeeiro se apaga e fico à sós com a minha consciência, procurando o auxílio da ciência para tentar entender que força é essa que não me deixa entrar na abstinência de matar-me

Para Sempre Submissa

- Eu sei que ele me ama. Eu sei que ele me ama. Tenho certeza que é amor”  –  Repito vezes sem conta enquanto ele se prepara para dar-me mais uma bofetada. Nossa relação é assim, uma mistura de amor e ódio, mas damo-nos super bem do nosso jeito doce e picante.  Hoje ele acordou bem disposto e manso.  Fizemos amor como já não fazíamos há muito tempo, foi como na nossa primeira vez, gostoso e intenso. Milagrosamente tivemos uma manhã tranquila, tomamos banho juntos e ele até levou-me ao trabalho.  Durante o dia fomos trocando mensagens carinhosas com doces dizeres e muitas outras coisas que eu não sabia que ele ainda era capaz de falar. Quando eu menos esperava, chegou na minha sala um enorme buquê de dálias vermelhas (depois de tantos anos ele ainda sabia que eu amava dálias), fiquei eufórica, não me contive e mandei logo uma mensagem a agradecer pelo gesto. 1, 2, 3 horas se passaram e ele não disse mais nada. Quando chegou a minha hora de ir para casa, achei melhor