O tempo ensinou-me a ignorar os olhares de consternação,
o desprezo estampado na cara de outros homens quando eu visto as minhas
camisetas fluorescentes com dizeres absurdamente incomuns ou quando decido que
a noite é minha e calço os meus Louboutins só para causar discórdia. Eu
vejo, mas aprendi que a minha felicidade não depende daquilo que os outros
pensavam sobre mim, mas pelo que eu permito que eles pensem. Enfim, com toda a
sinceridade do mundo… o que acontece lá fora já não me esquenta a alma, é o que
vivo sempre que atravesso o portão de casa que estraçalha o meu coração e acaba
com todas a esperanças que eu ainda tenho de um dia me sentir completo.
- Aberração, tu és uma aberração Joanne, Anne
ou o raio que o parta! Para mim tu morreste no dia em que decidiste assumir
esse teu lado negro e deixaste de ser o meu João, aquele que sempre me
acompanhava para os jogos de final de domingo ou à pesca aos feriados. Meu bom
Deus, tu serias o próximo acólito bem ali no altar ao lado do padre
Marcos. Meus filhos seguem Deus, meus filhos não são desviados ou então
tu não deves ser sangue do meu sangue (às vezes me questiono onde errei para
carregar essa cruz). Isso é azar, eu nunca vou aceitar essa mariquice enquanto viveres
por baixo do mesmo teto que eu, que por sinal é meu.
Enquanto ele proferia esses dizeres, a minha mãe
continuava ali no cantinho de sempre, implorando silenciosamente para que o meu
pai não fosse tão duro comigo. Por vezes ele a esbofeteava, então ela começava
a rezar arduamente, pedindo misericórdia como se isso fosse ajudar. Enfim, hoje
ele até invocou o espírito santo e em voz alta leu versículos da Bíblia que
pudessem recriminar as minhas escolhas. Normalmente, ele culpa-se apenas por
não ter sido tão presente quanto devia ou quando seus supostos amigos
cochichavam ao meu respeito, bem como por não ter repreendido a minha mãe todas
as vezes que permitiu que eu brincasse de bonecas com as minhas irmãs. Noutros,
culpa-a por ter tido trigêmeos (somos três obviamente, duas meninas e eu
fisicamente menino), por ter tratado todos de forma igual, não separar o A Z U L do R O S A e consequentemente me
tornado mais uma menina. As vezes tenta me exorcizar, vem para o meu quarto no
meio da noite, borra minhas paredes com uma suposta água benta, reza
exaustivamente (tantas vezes adormeceu nesse processo), ou traz o “famoso”
padre Marcos.
Ontem ele entrou sorrateiramente no meu quarto bem antes
do sol raiar, amarrou-me com uns fios na cintura, com muita luta meteu-me no
carro e levou-me a uma palhota (confesso que aquilo assustou-me bastante e
chorei de medo), fomos ter com alguém que a tia Lídia (irmã dele) lhe tinha
recomendado para “trazer o nosso João de volta”. Só me lembro de ter
voltado para casa ao anoitecer, com queimaduras espalhadas pelo corpo e muito
cansado. Minha mãe coitada, chorou tanto, desfez-se em frente de mim e só fez
com que eu me sentisse mal por ela ter criado tão bem as três crianças da vida
dela. Deixa-me triste saber que ela fez tudo com todo o amor do mundo, mas há
quem ache que a minha orientação é fruto da sua negligência – mãe de primeira
viagem banhada de incompetência. Não os condeno, cada um tem o direito de falar
o que quiser, mas não concordo com o facto de a agredirem mentalmente por algo
que ela nunca teve como mudar, ainda que quisesse. Na verdade, ela percebeu
tudo muito antes de eu saber que jamais encostaria a boca de uma mulher senão a
dela, mas ainda assim fechou os olhos para o moralismo que a sociedade iria
impor e permitiu-me ser como sou hoje. Ela foi a única que realmente permitiu-me,
mas hoje… hoje eu não tenha mais certeza disso. Seu olhar transborda
insegurança, ela exala submissão e incerteza, tudo porque não quer perder o
tipo que ela ainda chama marido. O marido que hoje lhe culpa e humilha por ela
ter se abdicado da sua vida para se dedicar à nós.
Bem, o resto da família concorda com o meu pai,
especialmente com a história de possessão. Eles não percebem como um homem
pode gostar de outro, tudo isso não faz sentido e é um assunto do diabo, o
diabo no caso sou eu. Também acusam a minha mãe de negligência, falta de porrada
por me ver crescer desta forma e não tomar atitudes severas para “endireitar-me”,
para que eu fosse um macho. Até hoje me pergunto que atitudes seriam essas.
Eletrocutar-me? Fazer sessões de hipnose? Exorcizar? Me obrigar a assistir
filmes pornográficos? Ridículo! Tudo por que pensam que minha vida resume-se em
quem eu beijo ou deixo de beijar e fazer aquelas… ah, nem preciso falar. Não
conseguem perceber que sou além disso, as coisas que eu alcancei, será que é
justo a sociedade me julgar enquanto cabe a Deus o papel do juízo final?
Eu sou mais do que o meu andar desleixado, sou mais do o
meu jeito feminino, o meu mundo cor-de-rosa é mais leve e eu só queria que o
tempo vos ensinasse que eu sou imperfeitamente normal, mas alguém um dia
disse-me que confiar no tempo poderia ser muito traiçoeiro e que o mais sensato
seria não confiar nele. Quando questionei o porquê, ela disse que o tempo nos
faz perder tempo. Confesso que fiquei a pensar nisso por infinitas horas, tanto
que acabei me perdendo no tempo que perdi a pensar nisso. Nesse pouco tempo que durou uma eternidade, descobri uma teoria libertadora, a teoria do Dane-se: “Se
aceite e seja feliz”.
Escrito por: Sheila Faiane & Nikki Mondlane
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