Parece fácil ser mulher, não é? Acham que já nascemos formatadas, com tudo
pré-definido: nascer, crescer, aprender desde pequena que o homem estará sempre
acima de nós, que devemos respeitar sem questionamentos constantes, que a
mulher é aquela que deve cuidar e manter o lar perfeito, ainda que por baixo
das suas roupas carregue cicatrizes profundas. Vivemos e aprendemos que devemos
nos instalar por trás deles e como sombras, servir de seu maior alicerce, mas
não nos ensinam que o caminho a trilhar não é fácil e que devemos ser fortes
até quando não mais nos aguentarmos em pé.
Minha mãe me ensinou também que devemos baixar sempre a cabeça, a razão a
eles pertence e mesmo quando não a tiverem, devemos aceitar e fingir demência –
dentro de casa os meus diplomas não servem para nada, eu sou chefe do portão
para fora. Sim, eu cresci nesse tipo de lar e assisti minha mãe ser espezinhada
todos os dias, ainda que cumprisse com todos os requisitos de mulher ideal:
obediente, dona de casa, companheira e saco de pancadas físicas e/ou
emocionais. A única diferença entre nós, é que eu aceito essas “políticas
matrimoniais” impostas, mas não as consigo seguir na íntegra –
honestamente, parece-me loucura desfazer-me completamente de mim por outra
pessoa. Enfim, por conta disso, sou evangelizada todos os dias na tentativa de
me fazerem entender que só assim serei feliz no meu lar.
Não sou do tempo dos casamentos arranjados, mas casei-me com um manhembana
que o meu pai decidiu que era o homem certo para mim e por sorte os nossos
santos bateram… pelo menos naquela altura parecia a oitava maravilha do mundo:
trabalhador, batalhador, bonito, conservador e bastante atencioso, tão
atencioso que penso que com o andar do tempo foi virando obsessão – não podia
sequer cantar na casa de banho que homem já se punha a perguntar com que
estava falar. Tínhamos tudo para dar
certo, as manias dele já não me aqueciam a cabeça, mas por outro lado, existia a
mãe dele que não aprovava a nossa relação; para ela uma machope já
mergulhada nas veias da cidade grande, não serve para o seu filho.
Era incrível como tudo que eu fazia por ele e até mesmo por ela, ou não era
suficiente ou era inútil, eu nunca seria perfeita. No início ele defendia-me,
ele era uma espécie de fiel escudeiro e durante três anos de casados, fomos
felizes, batalhamos para ter tudo que contruímos até hoje e causávamos inveja a
qualquer pessoa. Mas a família dele não gostava disso, de casal exemplar
passamos a ser conotados como arrogantes, era como se eu os tivesse tirado a
galinha dos ovos de ouro. Até virei feiticeira, diziam que eu era dona de uma
cabana bem forte – para eles, ele estava cego e não era normal o seu
comportamento: “Desde quando é que o Edú não ajuda a família, esse miúdo
mudou muito. Alguma coisa está errada e só pode ser aquela feiticeira que nós
mesmos fomos buscar”; era isso que eu ouvia quase sempre.
No início eu suportava, mas quando comecei a reclamar para ele, meu tão
amado marido; quando o disse que estava cansada e que ele devia tomar uma
posição, comecei a estragar tudo e me vi em um novo ambiente. Conheci um outro
homem: incompressível e agressivo. Comecei a não entender nada, comecei a não
perceber quem era aquele que se estava a relevar diante de mim. Não retruquei,
não fiz braço de ferro e fiz aquilo que fui ensinada, fechei a boca e fui
obediente… até onde pude. No início resultou, mas depois percebi que era trabalho
de Marracuene, ele até parou de me tocar.
No princípio eu achava que o problema era o facto de Eduardo me ter posto
como prioridade, mas depois percebi que havia ali muito fumo preto e só mais
tarde tive certeza, quando a minha querida sogra esperou que ele viajasse a
trabalho para acampar em minha casa durante uma semana – foi um inferno:
“Menina, estás a ficar velha e eu também, só que
de maneiras diferentes. Eu não sei quem te disse que esse rabo vai manter o teu
lar, mas se não ficares esperta vais perder e eu não vou me mexer. Eu quero
netos, o tempo não é teu amigo e muito menos eu. E já gora, és uma péssima
cozinheira e nem me ajudas em nada. Se não fosse aquela amiga do Edú a ir fazer
rancho para mim, eu já estaria morta de fome e tu aqui, nessa riqueza!”
Amiga do Edú? Era tudo que eu conseguia pensar. Eduardo tinha uma amiga que
fazia rancho para a minha sogra. Eu quis questionar, mas não o fiz, afinal de
contas ela sabia o que estava a fazer.
Meses se passaram e então comecei realmente a notar mais mudanças de
comportamento, mas não agi de cabeça quente, fui procurar a minha mãe que jazia
em uma tumba esquecida no cemitério de Lhanguene. Chorei minha alma,
pedi respostas, mas tenho certeza que onde quer que ela esteja, também está
demasiadamente cansada para me ajudar.
Queria muito que a minha família me apoiasse, mas lembro-me todos os dias
que no dia do meu casamento, o meu pai disse que a partir daquele dia não podia
mais intervir nos assuntos que me diziam respeito. Esse tinha sido o acordo,
esse tinha sido um dos pontos mais importantes do início da minha história, por
isso muito tarde percebi que estava sozinha nessa luta e isso despertou uma
rebeldia dentro de mim que eu sequer acreditava que existia – por causa de
algumas cabeças de gado estou presa a uma vida que não me dá vontade? Temos
lutado tanto, temos sido aquele casal que juntos juramos que jamais seriamos,
pois queríamos ser o melhor exemplo para qualquer pessoa que nos rodeasse, mas
nem tudo acontece como nos filmes.
Tornamo-nos completos estranhos, era como se eu tivesse perdido uma guerra que
nunca devia ter começado. Nem faz sentido, mas é tudo porque ninguém tenta
entender o meu lado, eu simplesmente não consiguia ter filhos e Eduardo escondia um segredo. Só existia uma única verdade, era ele quem não podia fazer filhos e eu me calei, calei por muito tempo e me cansei. Sentia-me só e havia quem me desse atenção, mas foi tanta atenção que acabei grávida e quando tentei ir embora, Eduardo quase acabou com a minha vida e disse que eu devia ficar, ele iria cuidar da meu filho, seria nosso. Eu sabia que ele somente queria ser bem visto pela sua família, mas também o amava... eu fiquei e fui espancada durante os 7 meses que Ghalib se aguentou no meu ventre.
Minhas manas, eu ainda me encontro no hospital e tenho medo de voltar para casa, para aquela vida que não me pertence. Eu tive de contar ao pai do meu filho e ele sugeriu que fugíssemos juntos, que cuidaria de mim, mas eu estou tão confusa agora. Não sei mais que caminho percorrer, penso tantas vezes em
desistir de mim, mas aí seria uma declaração clara da minha fraqueza e eu não sou esse tipo de
mulher. O que eu faço? Por onde começo a acertar minha vida?
Escrito por: Sheila Faiane
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